Pois é, o incrível aconteceu! Há dias tive um sonho (nos sonhos tudo é possível, como sabem…) em que, estando eu a esforçar-me por chegar ao fundo do quinto copo de ginja, sozinho, numa tasca alfacinha, a ver se afogava a crise no alambique do meu estômago ou, no mínimo, a esquecia através da anestesia dos meus neurónios, entra um estranho personagem, vestido à moda do século XVI e com o olho direito à belenenses. Pensando que estava com visões devido ao excesso de álcool, ia a levantar-me quando esse desconhecido, educadamente, me perguntou se podia sentar-se um pouco à minha mesa. Consenti, sentou-se, olhou-me fixamente e disparou:
- Vives da política ou posso confiar em ti?
Só então reparei bem na cara dele. Não me era estranha de todo. Hesitante, respondi-lhe:
- Não, nunca vivi da política…nem precisei dos "políticos" para me "safar" na vida...mas quem és tu e porque estás vestido assim?
- Conheces? – perguntou, entregando-me um velho exemplar de um volumoso livro.
- Claro – respondi-lhe – são os Lusíadas, o maior poema épico de Portugal.
- Não, não pode ser…tu não és….o Luis de Camões?! – questionei, estupefacto!
- Pois é, sou eu próprio e agora escuta-me com atenção que tenho de regressar aos Jerónimos antes que o guarda dê pela minha falta e me ponha de faxina aos sanitários: o belo livro que compus está hoje de tal modo desactualizado que quase sinto vergonha de o ter escrito. Nem imaginas as voltas que tenho dado no túmulo quando ouço as notícias sobre o que se passa no país que eu tanto amei e enalteci nos Lusíadas. Estou dorido, tenho a cabeça a andar à roda de tantas voltas dar e sinto-me revoltado. Por favor, ajuda-me a sair deste inferno e adequa os meus textos à vil tristeza que domina, hoje, a nossa pátria!
- Mas como, Luís?... eu não sou poeta, não me atrevo?!!! – tentei desculpar-me.
- Não tenhas receio! Senta-te nas margens do rio mais próximo da tua casa, concentra-te e aguarda a inspiração das musas. Eu estarei contigo através delas.
Tal como entrou, saiu, sem se despedir e mais não o vi.
Quando despertei, embora algo descrente, não resisti à tentação de experimentar o que me fora pedido. Corri a sentar-me junto à margem do Rio Coura, fechei os olhos, apelei às suas musas e, qual não é o meu espanto quando oiço, ao longe, em coro e quase sussurrando, vozes celestiais dizendo:
I
As sarnas de barões todos inchados
Eleitos pela plebe lusitana
Que agora se encontram instalados
Fazendo aquilo que lhes dá na gana
Nos seus poleiros bem engalanados,
Mais do que permite a decência humana,
Olvidam-se de quanto proclamaram
Em campanhas com que nos enganaram!
II
E também as jogadas habilidosas
Daqueles tais que foram dilatando
Contas bancárias ignominiosas,
Do Minho ao Algarve tudo devastando,
Guardam para si as coisas valiosas…
Desprezam quem de fome vai chorando!
Gritando levarei, se tiver arte,
Esta falta de vergonha a toda a parte!
III
Falem da crise grega todo o ano!
E das aflições que à Europa deram;
Calem-se aqueles que por engano…
Votaram no refugo que elegeram!
Que a mim mete-me nojo o peito ufano
De crápulas que só enriqueceram
Com a prática de trafulhice tanta
Que andarem à solta é que me espanta.
IV
E vós, ninfas do Coura onde eu nado
Por quem sempre senti carinho ardente
Não me deixeis agora abandonado
E concedei engenho à minha mente,
De modo a que possa, convosco ao lado,
Desmascarar de forma eloquente
Aqueles que já trazem, no seu gene,
A besta horrível do poder perene!
As minhas desculpas, caro Luís, se te entendi mal.